Durante vários anos enquanto era deputado federal, Jair Bolsonaro tinha um pequeno cartaz do lado de fora de seu gabinete com a frase “Quem procura osso é cachorro”. O cartaz tinha desenhos de um osso e de um de cachorro no lugar das palavras.
Em seus sete mandatos consecutivos (1991-2018) como deputado federal pelo Rio de Janeiro, Bolsonaro atuou como defensor declarado da ditadura militar que governou o país de 1964 a 1985 – encerrada pouco antes de ele próprio iniciar sua carreira política.
O cartaz do cachorro era principalmente uma referência à busca por pessoas desaparecidas durante a guerrilha perto do rio Araguaia, no leste da Amazônia, no início da década de 70. Durante o conflito, militantes do Partido Comunista do Brasil enfrentaram o establishment militar. Em 2004, quando o então deputado Bolsonaro posou para uma foto apontando para o cartaz do lado de fora de seu gabinete, o primeiro governo Lula havia anunciado um esforço para encontrar os corpos de 66 guerrilheiros que ainda não haviam sido localizados.
No entanto, os guerrilheiros mortos pelos militares no Araguaia não eram os únicos alvos da virulência de Bolsonaro. Ele também foi um crítico ferrenho do deputado Rubens Paiva (1929-1971), um proeminente engenheiro civil que foi preso, torturado e assassinado pelo regime militar, e cujo corpo nunca foi encontrado. Grande parte do ódio de Bolsonaro por ele surgiu de razões muito pessoais.
A história do desaparecimento de Paiva e da resistência de sua viúva, Eunice Paiva, ao regime é contada no filme Ainda Estou Aqui, indicado a três Oscars, incluindo o de Melhor Filme, e vencedor em março deste ano da estatueta de Melhor Filme Internacional. O filme foi um sucesso estrondoso no Brasil, vendendo mais de 5,7 milhões de ingressos, segundo a Sony Pictures. Também ajudou a moldar o debate nacional sobre a relação do país com um passado muito recente.
Assim que o filme estreou no Brasil, no fim de 2024, influenciadores de direita fãs de Bolsonaro convocaram um boicote. Eles tentaram retratar Fernanda Torres como eleitora de Lula e militante de esquerda, e lembraram aos usuários das redes sociais uma entrevista ao Roda Vida em 1992, na qual ela disse, então com 26 anos, que tinha preconceito contra “crentes” (ela se retratou dessa declaração posteriormente).
O próprio Bolsonaro aderiu ao boicote em janeiro deste ano, dizendo em entrevista à Bloomberg que não “perderia seu tempo” com o filme. “Conheço a história melhor do que eles”, ironizou.
Bolsonaro, no entanto, tem sua própria versão da história do Brasil.
Durante muito tempo, de dentro da Câmara dos Deputados, Bolsonaro procurou pintar Rubens Paiva como um aliado de grupos armados de esquerda, uma alegação ainda não provada. Ele também tentou retratar Paiva como vítima dos militantes de esquerda, supostamente traído e assassinado por seus próprios camaradas, em vez de preso e morto dentro de uma prisão militar – eximindo assim a ditadura da responsabilidade por seu desaparecimento.
Marcelo Rubens Paiva, o caçula e único filho homem do deputado, escreveu extensivamente sobre as mentiras de Bolsonaro a respeito de seu pai.
Segundo Bolsonaro, o deputado Rubens Paiva emprestou uma propriedade rural no interior de São Paulo a Carlos Lamarca, como base para travar batalhas contra os militares no início dos anos 70. No entanto, os relatórios oficiais escritos pelo regime na época não mencionam a propriedade dos Paiva. A ação ocorreu a dezenas de quilômetros da fazenda da família. Marcelo acrescentou que, quando adulto, seu pai raramente visitava o local, pois a família morava no Rio de Janeiro na época. Rubens Paiva foi assassinado no início de 1971, e Lamarca também foi morto por agentes do regime ainda naquele ano.
Marcelo também é autor de Ainda Estou Aqui (2015), o livro que narra a história de sua mãe Eunice e o desaparecimento de seu pai, no qual o filme é baseado.
Bolsonaro, que vem de uma infância pobre em área rural, guarda um antigo rancor contra a rica família Paiva. Na biografia escrita por seu filho mais velho, Flávio Bolsonaro, ele disse que a grande casa dos Paiva em sua pequena cidade natal tinha uma piscina, “algo raro na época”, e que os Paiva não a compartilhavam com outras crianças – um comentário surpreendente vindo de um defensor declarado da propriedade privada. Ele também escreveu que as crianças da família Paiva podiam comprar picolés, para sua grande inveja.
Em 2014, a Câmara dos Deputados inaugurou um busto em memória de Rubens Paiva – o único parlamentar federal na lista de 434 pessoas mortas ou desaparecidas pela ditadura militar compilada pela Comissão da Verdade. Segundo parentes de Paiva e deputados, Bolsonaro cuspiu no busto durante a cerimônia.
Enquanto Bolsonaro foi o crítico mais famoso de Ainda Estou Aqui, seu maior adversário elogiou o filme. O presidente Lula, que derrotou Bolsonaro por uma margem apertadíssima nas eleições de 2022, celebrou a vitória de Fernanda Torres no Globo de Ouro, bem como as indicações do filme ao Oscar.
Em uma mensagem em vídeo, Lula descreveu as indicações como uma vitória para o país, de forma semelhante à conquista de uma medalha olímpica por um atleta brasileiro.
Walter Salles, diretor do filme, também falou sobre a relação entre a recente tentativa de golpe e Ainda Estou Aqui. Em entrevista à jornalista Christiane Amanpour, da CNN, que foi ao ar em fevereiro, ele disse que o filme não existiria se o golpe tivesse sido bem-sucedido.
“Filmamos em 2023 sem ter a menor ideia de que havia ocorrido uma tentativa fracassada de golpe de Estado”, disse Salles. “Enquanto o filme era lançado no Brasil e acolhido pelo público” em novembro, disse ele, a Polícia Federal prendia suspeitos de uma operação planejada para assassinar Lula e o vice-presidente Geraldo Alckmin no final de 2022, depois que Bolsonaro perdeu a eleição, mas antes que seus rivais tomassem posse.
Muitos dos presos pelo complô são oficiais militares de alta patente, incluindo o general da reserva Walter Braga Netto, que atuou como ministro da Defesa de Bolsonaro e também como seu companheiro de chapa na eleição de 2022.
“Então, em meio ao lançamento do filme, percebemos que, mais do que nunca, era um filme sobre o presente, sabe, sobre o que estava acontecendo no país naquele exato momento”, acrescentou Salles.
Em uma das cenas principais de Ainda Estou Aqui, Eunice Paiva sorri enquanto posa para repórteres segurando a certidão de óbito do marido. A cena é uma recriação muito fiel de uma coletiva de imprensa que ocorreu em 1996, 25 anos após o desaparecimento de Rubens Paiva.
Embora esta tenha sido a primeira vez que o Estado brasileiro reconheceu a morte de Rubens Paiva, não especificou a causa.
No fim de 2024, após a estreia do filme nos cinemas, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) emitiu uma resolução ordenando a retificação das certidões de óbito das vítimas do regime militar, declarando claramente que sofreram “morte não natural, violenta, causada pelo Estado a desaparecido no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política no regime ditatorial instaurado em 1964”.
Enquanto os créditos rolavam após uma exibição no fim de novembro de 2024, em um cinema de Brasília, este repórter viu um espectador visivelmente emocionado levantar-se da cadeira e gritar: “Fora Bolsonaro! Ditadura nunca mais!”.