UM GRANDE AMIGO MEU, especialista em debates, gosta de usar a expressão “à melhor luz”. Significa ler argumentos e ideias em sua versão mais forte, entendendo ou ao menos pressupondo que seus autores são bem-intencionados. É o exato oposto da falácia do espantalho, que consiste em criar uma proposição falsa e fraca com o objetivo de derrotá-la e cantar vitória; ou ainda de simplesmente grunhir contra o adversário.
Em tempos de tribalismo turbinado por redes sociais, nunca precisamos tanto enxergar argumentos à melhor luz. Entender que as dezenas de milhões de eleitores de Bolsonaro e Haddad não assinam embaixo de todas as propostas do respectivo candidato ou partido; que a grande maioria votou por de fato acreditar que esse caminho era o menos pior dos dois.
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No romance 1984, a ditadura totalitária oferece ao povo um espaço de oposição – contra os inimigos do regime, naturalmente. É o “two minutes hate” ou dois minutos de ódio. Trata-se de um momento oficial na rotina dos cidadãos, durante os quais eles assistem a vídeos exibindo inimigos do Partido e podem vociferar à vontade. Escreveu Orwell:
“O horrível dos Dois Minutos de Ódio era que embora ninguém fosse obrigado a participar, era impossível deixar de se reunir aos outros. Em trinta segundos deixava de ser preciso fingir. Parecia percorrer todo o grupo, como uma corrente elétrica, um horrível êxtase de medo e vindita, um desejo de matar, de torturar, de amassar rostos com um malho, transformando o indivíduo contra a sua vontade, num lunático a uivar e fazer caretas. E no entanto, a fúria que se sentia era uma emoção abstrata, não dirigida, que podia passar de um alvo a outro como a chama dum maçarico”.
A campanha eleitoral de 2018 se resume basicamente a milhões de ocorrências de Dois Minutos de Ódio, inclusive porque não se costuma dedicar mais do que isso a cada mensagem de WhatsApp.
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Na HQ Watchmen, transformada em um excelente filme em 2009, o antagonista bola e executa um plano para pôr fim à Guerra Fria e salvar o mundo do holocausto nuclear. Basta fazer os Estados Unidos e a União Soviética acreditarem que a Terra está sob ameaça de criaturas de outro planeta.
Refletindo sobre essa história, pensei se algo poderia unir os eleitores mais fervorosos de Bolsonaro e Haddad. Alguma ameaça externa, alguma grande catástrofe, faria as facções se juntarem em uma causa comum? Ao que parece, não. Porque além das próprias opiniões, cada lado tem os próprios fatos. Um lado acredita em fraude nas urnas eletrônicas; outro, que o impeachment de Dilma foi um golpe (para citar dois dos exemplos mais graves). Se amanhã o Brasil fosse invadido por uma potência estrangeira, parece inevitável que, em vez de se juntarem para combatê-la, os lados ficariam separados, com um deles se juntando ao inimigo. No caso de uma catástrofe ambiental iminente ou uma escalada na violência urbana, novamente as facções lutariam a respeito dos fatos mais do que para enfrentar o problema.
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Mas isso não quer dizer que apenas 1984, e não Watchmen, traga lições para o Brasil deste 2018 que termina.
A cada quatro anos ouvimos dizer que estamos na eleição mais importante de todos os tempos (Martin Wight já nos ensinava sobre os riscos da falta de perspectiva). É como se a eleição do adversário significasse o apocalipse.
Adrian Veidt, o bilionário que faz as duas superpotências se unirem e põe fim à Guerra Fria, pergunta ao onisciente Dr. Manhattan se agiu certo “no final”. O Dr. responde:
“No final, Adrian? Nada chega ao final”.
